A matemática da conservação
Como comunidades indígenas do interior da Amazônia estão se inserindo no mercado produtivo de forma sustentável.
Por Grace Menck Figueroa, Eduardo Vieira Barnes e Luciana Lima
Com quantos paus se faz uma canoa? O ditado popular faz referência ao conhecimento indígena tradicional e a resposta é: com um pau só, já que a boa canoa é inteiriça, sem emendas. Mas no caso de algumas comunidades dos povos Xikrin e Parakanã, a pergunta que tem feito mais sentido, ultimamente, é: com quantos quilos se faz uma boa safra de castanhas? Nessas comunidades, os indígenas participaram de aulas de matemática aplicada, capacitações em administração e receberam apoio para melhorar a gestão da produção e do escoamento de castanha-do-Pará em suas aldeias e, com isso, já conseguiram maior valorização dos seus produtos florestais.
Essa melhora de gestão, que está contribuindo para elevar a renda das famílias da região, é um dos resultados do Projeto Implementando a Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (IGATI), coordenado pela TNC, com apoio do Fundo Amazônia, gerido pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), e em cooperação técnica com a Fundação Nacional do Índio (FUNAI). O projeto ajudou a fortalecer as organizações indígenas, oferecendo apoio técnico para que as organizações possam ter protagonismo para definir e executar projetos de manejo sustentável de seus territórios na Amazônia. No caso dos povos Xikrin e Parakanã, o trabalho aconteceu por meio da participação cada vez mais ativa das comunidades na administração financeira e comercial da castanha-do-Pará e outros recursos naturais sustentáveis (como o açaí, cumaru, copaíba e artesanato feito de fibras).
A produção da castanha-do-pará é completamente orgânica nas 15 aldeias da Terra Indígena Trincheira-Bacajá e nas 10 aldeias da Terra Indígena Apyterewa que participam do projeto. O processo acontece com a queda natural dos ouriços da castanha, que é coletada pelos indígenas, uma prática sustentável já comprovada por estudos científicos, aproveitando melhor os talentos, tradições e costumes locais. O produto pode ser escoado por embarcações como balsas ou barcos menores, as “voadeiras”, que serpenteiam pelos Rios Bacajá e Xingu, ou em caminhões que singram nas florestas da bacia Amazônica.
Os membros da comunidade indígena dizem que a castanha deve ser coletada, cuidadosamente, no contexto das suas práticas tradicionais e as exigidas pelo mercado baseado em princípios sustentáveis. Kabetum Xikrin, por exemplo, é o gestor responsável pelo paiol de armazenamento da castanha na aldeia Rap-Kô, que apoia as associações indígenas Ibkrin e Abex na venda da produção de castanha coletada na floresta. Ele faz a medição da castanha em latas de 20 litros, ajuda a contabilizar o valor de cada lata e trabalha no processo de secagem e seleção das castanhas, separando os frutos não comercializáveis dos de boa qualidade, destinados à comercialização. Finalmente, a castanha é escoada pelos rios ou estradas que cruzam a imensidão da Amazônia, rumo ao seu destino: o comércio local, regional, nacional e até internacional.
Alguns dos compradores mais exigentes são grandes empresas, como a Wickbold, com sede em São Paulo, que produz pães usando a castanha-do-Pará como um dos ingredientes. O contato com compradores e comercialização contam com o apoio da Rede de Cantinas da Terra do Meio e a rede Origens Brasil®. O objetivo do projeto da TNC é, justamente, auxiliar que este processo de comércio justo se fortaleça baseado no que foi validado pelos próprios povos indígenas em seus Planos de Gestão Territorial e Ambiental, os PGTAs, dos povos Xikrin e Parakanã.
Ao organizar a produção, com apoio da TNC, os indígenas multiplicaram os ganhos da produção castanheira e encontraram novas formas de valorizar e fortalecer as culturas Xikrin e Parakanã. E não é qualquer produção! O extrativismo organizado pelas comunidades é sustentável pois valoriza uma economia de floresta em pé. As sementes são coletadas no chão, dispensando o corte das castanheiras e garantindo uma perenidade na produtividade da castanha, que é orgânica do início ao fim do processo de produção. O depoimento de Kabetum repercute bem os benefícios que o projeto e seus incentivos trouxeram, “com a valorização da castanha, ganhando melhor preço, nossa cultura e nossa floresta são fortalecidas”, ele diz.
Essa iniciativa, além de estimular a conservação ambiental e geração de renda nas Terras Indígenas, por meio do fortalecimento das instituições e treinamentos, como o de matemática aplicada, mantém tradições e valoriza saberes tradicionais, como o costume da vigilância, já que a cada ano famílias da comunidade são incentivadas a percorrerem o território. É uma solução que envolve a comunidade, mas que também aproveita o mercado sustentável como força de transformação. A atividade é sustentável em todos os sentidos: do ponto de vista socioambiental e cultural. O trabalho beneficia as comunidades, mantendo os costumes indígenas e ajudando a conservar a floresta, não utilizando a castanheira para fins madeireiros e protegendo-a, para que seus frutos possam cair todos os anos das árvores, além de, no ponto de vista econômico, ajudar a inserir os indígenas na cadeia de produção de forma competitiva, garantindo o protagonismo de suas organizações.
O projeto estimula a autonomia econômica dos indígenas e usa o mercado a favor da transformação, além de ser um convite a empresas com responsabilidade ambiental e corporativa a compreenderem esse modelo por meio de encontros realizados anualmente na região do Xingu com participação das redes de produtores extrativistas indígena e comunidades locais. No fim das contas, matemática aplicada, quando unida à conservação, pode ser um ótimo programa de índio!
Grace Menck Figueroa é advogada da TNC América Latina
Eduardo Vieira Barnes é Especialista em Políticas Indigenistas da TNC Brasil
Luciana Lima é Gerente de Campo de PGTAs no Médio Xingu da TNC Brasil