Um acordo transformador para a natureza
Uma nova estrutura global para biodiversidade pode marcar uma transformação em como nos relacionamos com a natureza.
Em outubro de 2020, representantes dos 196 países que fazem parte da Convenção das Nações Unidas sobre Diversidade Biológica (CBD, em inglês) se reuniriam em Kunming, China, para finalizar um novo Quadro Global de Biodiversidade. O evento foi adiado e ainda não tem nova data definida para acontecer, devido a pandemia do COVID-19, mas a expectativa para os acordos que devem ser firmados na Convenção continua grande. Assim como o acordo climático de Paris de 2015, esse novo acordo pode marcar uma virada na maneira como gerenciamos nosso relacionamento com a natureza.
Mas os defensores da biodiversidade devem aprender uma lição importante com os ativistas climáticos. As ações climáticas globais ganharam força somente depois que ficou claro que a questão envolvia mais do que o meio ambiente e exigiria uma transformação nos transportes, na energia, agricultura, infraestrutura e em muitas indústrias. Da mesma forma, a rápida perda de biodiversidade que testemunhamos envolve muito mais do que a natureza. O colapso dos ecossistemas ameaçará o bem-estar e os meios de subsistência de todos no planeta. Consequentemente, a CDB deve ir além das noções tradicionais de “conservação” para envolver a todos os setores relevantes da economia e da sociedade civil.
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Desde sua criação após a Eco-92 no Rio de Janeiro, a CDB tem tido amplo sucesso em ações que pressionam países a estabelecer novas áreas protegidas, de tal modo que quase 15% das áreas terrestres no mundo agora estão sob algum tipo de designação como parques (embora a parcela de áreas marinhas protegidas seja muito menor). Mas, apesar desse sucesso relativo, a perda de biodiversidade continuou, o que sugere que a criação de refúgios na natureza é necessária, mas não suficiente. Para retardar e deter o rápido declínio de espécies e habitats, devemos discutir como as sociedades humanas manejam terras e paisagens marinhas e os recursos que delas são extraídos.
Atualmente, nossos incentivos econômicos são todos voltados ao estímulo de atividades que conduzem à perda de biodiversidade. A agricultura, a infraestrutura e as áreas urbanas estão em rápida expansão, assim como as indústrias extrativas, como silvicultura, mineração e pesca. Além de converter diretamente as paisagens, essas práticas podem perturbar habitats naturais e degradar áreas muito maiores, criando pontos de acesso para caça ilegal, exploração madeireira e outras atividades. Poluentes, escoamento e uso de água industrial e agrícola causam ainda mais danos.
Apenas 5% da superfície terrestre do planeta permanecem inalterados pelas atividades humanas, e essa parcela provavelmente diminuirá ainda mais se não instituirmos mudanças em breve. Um estudo recente de cientistas da The Nature Conservancy (TNC) constatou que se as tendências atuais se mantiverem, a construção de estradas e infraestrutura de energia (incluindo fontes renováveis), juntamente com a mineração e a agricultura, ameaçam dobrar a conversão de áreas selvagens intactas restantes na América Latina e triplicar as terras convertidas na África até 2050.
Tradicionalmente, a responsabilidade de proteger o mundo natural recai sobre os ministérios do meio ambiente, os gestores de parques e os conservacionistas, todos os quais participarão das negociações no ano que vem. Mas, para ser verdadeiramente transformacional, o Quadro Global de Biodiversidade pós-2020 também deve envolver pessoal de finanças, planejamento, transportes, energia e agricultura, particularmente aquelas com poder de influenciar mudanças em economias inteiras.
Os ministérios da agricultura, por exemplo, são fundamentais para conservar os habitats naturais e proteger os corredores de biodiversidade para os polinizadores e outros animais silvestres. Para retardar a conversão de habitats, os governos podem condicionar os subsídios agrícolas a considerações ambientais e exigir que os agronegócios estrangeiros comprovem que as importações são produzidas sem a conversão de habitats naturais.
Da mesma forma, a geração de energia, os transportes e a infraestrutura são fatores principais na perda de biodiversidade, exigindo esforços mais robustos de planejamento e mitigação por parte de outros ministérios além daquele responsável pela conservação. Seja por regulamentação ou incentivos, os governos devem fazer mais para minimizar o impacto dessas atividades na natureza. E quando não for possível evitar os impactos, deve-se exigir que os projetos façam o que for necessário para compensar a perda de biodiversidade, investindo na restauração de terras degradadas ou desmatadas. Para isso, uma nova estrutura deve estabelecer diretrizes sobre como setores específicos podem se aprimorar com o tempo.
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Garantir prestação de contas e transparência reais requer uma agenda clara. Mas pelo que, especificamente, os países devem prestar contas? A TNC propôs uma métrica baseada no “ganho líquido da natureza”, que permitiria às partes mostrar melhorias ano a ano nas condições dos habitats naturais e da biodiversidade em paisagens de produção, como terras agrícolas.
É certo que esse tipo de indicador é mais difícil de medir do que os benchmarks mais comuns, como áreas protegidas. Mas com as novas tecnologias espaciais de baixo custo, como sistemas de posicionamento geográfico (GPS), sistemas de informação geográfica (SIG) e sensoriamento remoto, os dados necessários para medir o progresso estão facilmente ao alcance. Em um cenário ideal, avaliaríamos as condições de cada habitat em escala global, formando um entendimento detalhado de todos os ecossistemas. E com esses dados, poderíamos monitorar o progresso nos habitats por país, ecorregião ou bioma.
Salvar a natureza não é tarefa apenas do governo; deve ser um esforço de toda a sociedade. Mesmo com legislação e aplicação de leis ideais, os governos provavelmente não podem eliminar todos os principais fatores de perda de biodiversidade. O apoio de empresas, governos locais, comunidades indígenas, grupos da sociedade civil e organizações religiosas será essencial. Uma abordagem setorial que apoie os "ganhos líquidos da natureza" pode ser uma plataforma pela qual todos os interessados se comprometam voluntariamente com nossos objetivos mais amplos.
A comunidade internacional tem menos de um ano para negociar uma estrutura capaz de transformar sua relação com a natureza. Se os governos querem que a reunião da CBD em Kunming seja um momento decisivo, eles terão que se engajar no trabalho árduo de rever a maneira como manejamos os recursos da terra e dos oceanos em todos os estágios de extração, produção e consumo. Isso somente será possível se os negociadores reconhecerem que o Quadro Global da Biodiversidade não é uma questão apenas para ambientalistas.