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O Sistema alimentar global amadurece para mudanças

Como a maior ameaça atual à natureza pode se tornar sua melhor aliada.

Poucas coisas moldam nosso planeta na mesma escala que a alimentação. Atualmente, estamos em um caminho perigoso, pois a produção de alimentos continua a acelerar as mudanças climáticas e a perda da biodiversidade. E para agravar o desafio, precisamos produzir ainda mais alimentos. A ONU espera um aumento de 50% na demanda total de alimentos e de 73% na demanda por proteína animal até 2050, quando a população global estimada será de quase 10 bilhões e a renda global o triplo do que é hoje.

Até o momento, a agricultura e o meio ambiente têm sido vistos como um jogo de soma zero.  O pensamento até agora tem sido que alguns danos ambientais são uma contrapartida infeliz, mas necessária para aumentar a produção de alimentos e nutrir a humanidade. Mas as coisas não precisam ser assim, já sabemos como alimentar uma população crescente sem destruir o planeta. Mas precisamos pensar além de como produzir mais e reduzir danos, precisamos investir em um sistema alimentar que restaure a natureza em vez de esgotá-la. 

Reserva Zumwalt Prairie, Oregon. O gado pode ajudar a manter a pradaria, especialmente se eles se locomoverem de um lugar para outro para pastar.

Uma ameaça crescente, e uma oportunidade ainda maior.

A produção de alimentos alterou nosso planeta mais do que qualquer outra atividade humana. Ela é responsável por 24% das emissões de efeito estufa e 70% do uso total de água doce; é talvez a maior causa da perda da biodiversidade. A produção de alimentos também é a causa de 80% da perda global de habitat, uma tendência que está acelerando.

Além da crescente demanda por mais alimentos, muitas práticas agrícolas degradam intensamente a saúde do solo ao longo do tempo, até que eventualmente ele deixa de ser produtivo. Frequentemente, os agricultores são forçados a abandonar as terras degradadas e converter novas paisagens em plantações ou pastagens. Se não revertermos essas tendências, podemos perder outros 400 milhões de hectares de habitat natural até 2050, uma área duas vezes maior do que o México.

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Estamos em um momento decisivo da história: nunca houve um momento melhor, ou mais crucial, para fazer mudanças nos setores de produção de alimentos.

E ainda assim, a vasta escala de nosso sistema alimentar significa que ele pode ser um dos maiores impulsionadores para uma mudança positiva no planeta. Estamos em um momento decisivo da história: nunca houve um momento melhor, ou mais crucial, para fazer mudanças nos setores de produção de alimentos. 

Relatório: recuperação positiva da natureza

Princípios para investir em iniciativas e empregos baseados na natureza para estimular a economia pós-COVID. Leia o relatório da Nature4Climate

O choque econômico causado pela pandemia da COVID-19 deixou muitos países lutando para reconstruir sociedades e economias. Mas há um reconhecimento crescente de que a reconstrução não pode ser um retorno ao "normal". Podemos construir algo melhor: um sistema econômico que seja, nas palavras da líder do FMI, Kristalina Georgieva, “mais verde, mais inteligente e mais justo para todos”.

A produção de alimentos não é somente a maior força a afetar a natureza - ela também responde por quase 10% da economia global. Portanto, se queremos economias mais verdes e justas, o objetivo principal deve ser transformar nossa economia alimentar para que ela possa sustentar a natureza, ao mesmo tempo que alimenta mais pessoas e dá maior apoio aos meios de subsistência de agricultores, pescadores e outros produtores.

Isso parece uma tarefa impossível? Ela é totalmente possível. Na verdade, as sementes dessa transformação já foram plantadas. É a mudança para sistemas alimentares regenerativos.  

Investir para o futuro. Acelerar a adoção de práticas de produção regenerativas na economia global de alimentos pode ser a oportunidade mais econômica que temos para restaurar a natureza.

Quais são os sistemas alimentares regenerativos?

Os sistemas alimentares regenerativos usam técnicas que não só evitam a degradação da natureza como trabalham ativamente para restaurá-la enquanto mantêm ou aumentam a produção de alimentos.  

Um sistema alimentar para restaurar o planeta

A pandemia expôs rachaduras em nosso sistema alimentar. Então vamos investir no futuro agora. Leia o artigo de Michael Doane.

As práticas regenerativas do solo oferecem um exemplo claro. As técnicas de lavoura em fileiras, como plantio direto ou reduzido, e o uso de plantas de cobertura podem restaurar a complexa biologia do solo que é a chave para a produção de safras de longo prazo, ao mesmo tempo que captura mais emissões de gases de efeito estufa e reduz o escoamento de nutrientes. Mais alimentos e um ambiente mais saudável.

Mas a saúde do solo é apenas um exemplo, os sistemas alimentares regenerativos também podem incluir pastagens aprimoradas, aquicultura restauradora e melhor gestão da pesca. Acelerar a adoção de práticas de produção regenerativas dentro da economia alimentar global pode ser a oportunidade mais econômica que temos para restaurar a natureza. Na The Nature Conservancy, o potencial pragmático desta oportunidade nos inspira. 

Ancón, Peru. Os pescadores de mergulho estão trabalhando com o Programa de Oceanos da TNC no Peru para gerenciar sua pesca de forma mais sustentável.
Lima, Peru. O Terminal Pesqueiro Villa María del Triunfo, onde os pescadores de Ancón esperam abrir uma barraca e poder trabalhar diretamente com os compradores.

A escala da oportunidade.

Atualmente, 37% da área terrestre da Terra é usada para produzir alimentos, sem contar com os alimentos que obtemos do oceano, que constituem uma parte crescente das dietas globais. A implementação de práticas regenerativas em todas essas paisagens terrestres e marinhas representa uma oportunidade enorme, mas também um desafio hercúleo. Requer uma mudança em todo o sistema que vai muito além dos agricultores, pescadores e pastores. E é assim que podemos chegar lá. 

Relatório: financiando a natureza.

A avaliação mais abrangente até agora sobre quanto o mundo gasta atualmente para beneficiar a natureza, o quanto mais precisamos gastar e como podemos fechar esse déficit de financiamento na natureza. Leia o relatório agora.

Incentivar os governos a reformar os subsídios.

Para começar, podemos trabalhar com formuladores de políticas globais para melhorar a política fiscal em torno de alimentos. Governos em todo o mundo gastam até US$ 500 bilhões por ano em subsídios agrícolas, florestais e de pesca que degradam a natureza – quantia que é mais do que o dobro do que gastam para proteger ou restaurar a natureza. Precisamos trabalhar com os formuladores de políticas para que designem os subsídios de práticas focadas exclusivamente em produção para àquelas que apoiam os produtores na mudança para práticas regenerativas que restauram a saúde do solo e da água e, ao mesmo tempo, sustentam ou aumentam a produção.

Essa mudança é crucial, não apenas para a segurança alimentar de longo prazo, mas também para enfrentar as duas crises globais que atualmente assolam nossa sociedade: as mudanças climáticas e a perda de biodiversidade. A reforma dos subsídios agrícolas é talvez a coisa mais importante que podemos fazer para fechar a lacuna de financiamento da biodiversidade, a diferença entre o que gastamos atualmente para proteger a natureza e quanto precisamos gastar, de acordo com um novo relatório do Instituto Paulson, da TNC e o do Centro Cornell Atkinson para Sustentabilidade. Na verdade, aproximadamente 40% da lacuna de financiamento de US$ 700 bilhões poderiam ser fechados apenas pelo redirecionamento dos subsídios para apoiar a produção positiva para a natureza. 

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Devemos pensar para além de produzir mais e reduzir danos, podemos investir agora na mudança para um sistema alimentar que restaure a natureza em vez de esgotá-la.

Recompense os atores do mercado por seu desempenho.

Os subsídios do governo sustentam as realidades do mercado e os atores de mercado em toda a cadeia de abastecimento de alimentos cada vez mais assumem responsabilidade por seu papel de apoio à natureza. Mas, embora muitas empresas que lidam com o consumidor tenham feito avanços em transparência e responsabilidade, nenhum progresso semelhante foi feito no restante da cadeia de suprimentos. Até que isso aconteça, será difícil recompensar os agricultores por boas práticas.

Dezenas de empresas assinaram um compromisso para eliminar o desmatamento e a conversão das principais cadeias de suprimentos de commodities até 2020, mas nenhuma delas cumpriu o compromisso. Traders de soja e carne bovina ainda não compartilham indicadores básicos sobre conversão de habitat, conforme recomendado pelo Quadro de Responsabilidade que muitas empresas citam como ponto de referência para seus compromissos. Não podemos simplesmente aceitar mais uma década de metas perdidas, agora é o momento de definir nosso padrão coletivo para superá-las. Há uma tendência crescente de recompensar as empresas que estão progredindo em tais metas, mas não podemos fazê-lo se elas não relatarem seus avanços.  

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Reconheça e apoie pequenos proprietários, comunidades rurais e povos indígenas.

A transformação global não significa trabalhar exclusivamente com grandes produtores, podemos considerar oportunidades de escala em termos de influência e quantidade absoluta. Existem mais de 570 milhões de fazendas em todo o mundo e a maioria são pequenas e administradas por famílias. Na verdade, as fazendas de agricultura familiar administram quase 75% das terras agrícolas do mundo. Isso torna os pequenos produtores cruciais para a adoção global de práticas regenerativas. Os pequenos proprietários indígenas desempenham um papel particularmente importante, já que suas terras detêm uma parcela admirável da biodiversidade mundial e dos estoques naturais de carbono.

Mas as comunidades indígenas muitas vezes  precisam lutar para ter sua posse de terra reconhecida, apoiar suas contribuições para uma transformação regenerativa significa tomar medidas que protejam seus direitos. Outras comunidades podem não ter o capital ou experiência para fazer a mudança para práticas regenerativas por conta própria. Governos, corporações e ONGs como a TNC podem desempenhar um papel crucial ajudando esses milhões de produtores a adotarem práticas regenerativas que irão melhorar a saúde do planeta e suas atividades a longo prazo. 

Os alimentos nos unem. Cultural, economica e biologicamente, os alimentos são uma das forças mais poderosas que moldam a vida humana.

É hora de um crescimento positivo.

Nossa necessidade por alimentos não está desaparecendo ou diminuindo - está crescendo. E a maneira como atualmente cultivamos alimentos está degradando o planeta de uma forma que, paradoxalmente, torna o cultivo de alimentos cada vez mais difícil. Mas estou confiante de que podemos escapar desse ciclo negativo. Alavancando o ritmo da inovação tecnológica, aproveitando a rápida evolução da ciência de regeneração e capitalizando os novos compromissos de empresas globais com modelos de negócios regenerativos, uma nova economia alimentar está no horizonte.

Um sistema alimentar regenerativo é nossa melhor opção, não apenas para proteger a natureza, mas para garantir que a vida humana sobreviva e prospere. Juntos, podemos transformar a maior ameaça atual à natureza em sua maior oportunidade de ter um sistema alimentar que traga um crescimento positivo para as comunidades, economias e o planeta.