Uma ameaça para a gestão da água no Brasil e para a luta contra às mudanças climáticas
Em meio às conferências de clima e biodiversidade, novo PL desmonta a gestão de recursos hídricos e não prepara o país para a emergência climática.
Por Samuel Barreto - Gerente nacional de Água da TNC Brasil
Em meio às decisões da Conferência do Clima (COP27), no Egito, e da Conferência da Biodiversidade (COP15), no Canadá, com governos, especialistas, cientistas debruçados em debates e análises que buscam soluções urgentes e imediatas para frear as mudanças climáticas e a perda da biodiversidade e mitigar seus efeitos, no Brasil, o Projeto de Lei 4546/2021, apresentado pelo atual governo, representa um retrocesso na gestão de recursos hídricos, abrindo espaço para o surgimento de mais conflitos pelo uso da água, além de não preparar o país para enfrentar a emergência climática.
A Lei das Águas (Lei 9443/1997), o marco hídrico do Brasil, apresenta importantes diretrizes para a integração da gestão de recursos hídricos com a gestão ambiental, a articulação da gestão de recursos hídricos e de uso do solo, e a integração da gestão das bacias hidrográficas com a dos sistemas estuarinos e zonas costeiras, além de ter entre seus objetivos a prevenção e a defesa contra eventos hidrológicos críticos de origem natural ou decorrentes do uso inadequado dos recursos naturais.
Um dos pontos centrais para o qual se busca um caminho é o enfretamento aos extremos climáticos, como enchentes e secas sem precedentes, que vem se intensificando nos últimos anos por todo o planeta. Esses eventos têm impacto direto nos recursos hídricos e afetam a oferta de água. Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), cerca de 559 milhões de crianças e adolescentes no mundo estão expostos a ondas de calor frequentes, e, consequentemente, mais vulneráveis a problemas de saúde. Aqui no Brasil, milhões de pessoas são diretamente impactadas anualmente por inundações ou secas, que afetam a saúde, a segurança alimentar e até mesmo a moradia das pessoas.
Enquanto líderes mundiais buscam caminhos para garantir a segurança hídrica em meio à crise climática, por aqui, tramita no Congresso Nacional um Projeto de Lei (PL 4546/2021) que modifica a Lei das Águas sem levar em consideração o impacto do aquecimento global na disponibilidade hídrica e sem endereçar os desafios inerentes ao enfrentamento dos extremos climáticos.
As soluções para o fornecimento de água apresentadas nesse Projeto estão totalmente focadas em investimentos e obras de infraestrutura cinza, que há muito sabemos que não são suficientes para enfrentar as crises hídricas. O texto em tramitação não faz menção, por exemplo, a investimentos em Soluções baseadas na Natureza (SbN), que são comprovadamente cruciais no enfrentamento às mudanças climáticas, podendo contribuir com mais de 30% das soluções necessárias.
O PL4546/2021, que quer instituir o Sistema Nacional de Infraestrutura Hídrica, também vai na contramão de conquistas importantes alcançadas com a Lei das Águas, em vigor há 25 anos, e sancionada após incansáveis discussões e debates com todos os setores envolvidos. O novo texto prevê, por exemplo, a cessão onerosa dos recursos hídricos, o que na prática concede a posse e o uso da água ao usuário, quebrando um princípio fundamental de que no Brasil, a água é um bem de domínio público dotado de valor econômico. Em outras palavras é um tipo de “privatização da água”.
Em um país onde quase 35 milhões de pessoas não têm acesso regular a água tratada, segundo dados do Sistema Nacional de Informações sobre o Saneamento (SNIS) e do Instituto Trata Brasil (ITB), esse instrumento pode ampliar ainda mais as desigualdades e injustiças, o que vai na direção contrária dos esforços e diretrizes das Nações Unidas em universalizar o acesso à água potável e ao saneamento básico, que são direitos universais.
O PL 4546/2021 enfraquece também fundamentos da Lei das Águas baseados nos princípios de integração, participação e descentralização construídos em sintonia com as diretrizes da ONU e que trouxeram para o país um modelo inovador e inclusivo de governança. Isto porque volta ao modelo de centralização na gestão dos recursos hídricos esvaziando a competência dos Comitês de Bacias e do Conselho Nacional de Recursos Hídricos.
Vale lembrar que os Comitês de Bacias Hidrográficas são colegiados deliberativos que têm como fundamento a descentralização e a participação dos usuários da água, da sociedade civil e do poder público, para implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos. Eles estão na base da gestão dos recursos hídricos e foram instituídos pela Lei das Águas, simbolizando uma conquista após amplos debates com a sociedade civil, comunidade científica, usuários de água e especialistas do setor.
O que mais preocupa a todos que participaram da construção deste que é o verdadeiro Marco da Gestão e Governança das Águas no Brasil é que o seu possível substituto foi construído sem praticamente nenhum debate e sem participação dos setores, e dessa mesma forma pode ser aprovado na Câmara dos Deputados.
Atualmente, este projeto de lei está apensado ao PL 1907/2015 (institui a Política Nacional de Recursos Hídricos, cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos), que, por sua vez, está agregado a outro PL, de número 1616/1999 (gestão administrativa e a organização institucional do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos). Esta construção demanda agora a elaboração de um substitutivo, pelo relator do PL 1616, que contemple os três Projetos agrupados. Com isso, o futuro dos recursos hídricos no Brasil pode ser aprovado com tramitação conclusiva em Comissão, ou seja, sem passar pelo Plenário da Casa.
Uma proposta que visa alterar uma Lei tão importante, conquistada pelos brasileiros, precisa de discussões mais amplas e não pode ser aprovada a toque de caixa pelo Congresso Nacional.
*Samuel Barrêto é ambientalista e gerente nacional de Água da TNC Brasil, integra a Aliança Latino-americana de Fundos de Água, a Seção Brasil do Fórum Mundial de Água, é membro do Comitê Gestor do Observatório de Governança das Águas (OGA) e do Grupo de Trabalho de Água da Rede Brasileira do Pacto Global da ONU.
O Observatório das Águas – OGA Brasil A OGA é uma rede multissetorial que reúne 68 instituições (setor privado e sociedade civil, setor privado e governos) e 20 pesquisadores que tem por missão gerar, sistematizar, analisar e difundir informações das práticas de governança das águas pelos atores e instâncias do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos - SINGREH, por meio do acompanhamento de suas ações.
Publicado originalmente em Um Só Planeta
15 de dezembro de 2022
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