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Indígenas e cientistas unidos por rios amazônicos mais limpos e livres

A sinergia entre a sabedoria ancestral e a ciência é uma ferramenta para proteger as bacias hidrográficas da Amazônia.

Amazônia. Cerca de sete milhões de quilômetros quadrados de bacias que cruzam e conectam oito países da América do Sul - Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela - e uma região francesa - Guiana Francesa. Além disso, as águas de seus rios abrigam uma vasta biodiversidade.

Segundo uma análise da The Nature Conservancy (TNC), esses rios abrigam pelo menos 2.600 espécies de peixes de água doce, das quais 1.260 são endêmicas. Isso significa que cinco por cento dos peixes de água doce do mundo têm os rios amazônicos como habitat, desde os Andes até a foz do Amazonas, no Oceano Atlântico.

Sua rede de rios e margens também sustenta uma floresta que atua como um regulador do clima regional e fornece água e chuva para uma região que representa 70 por cento do PIB sul-americano. A Amazônia. Uma área terrestre semelhante ao território continental dos Estados Unidos, que, de acordo com estimativas do WWF, abriga dez por cento da biodiversidade mundial.

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    5%

    Cinco porcento dos peixes de água doce do mundo estão nas águas que correm dos Andes até onde o Rio Amazonas encontra o Oceano Atlântico

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    10%

    A Amazônia, uma porção de terra com o tamanho da área continental dos EUA, que concentra 10% da biodiversidade do planeta.

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    34M

    O ecossistema aquático da Amazônia fornece água e alimentos para 34 milhões de pessoas que vivem na região, incluindo 380 diferentes povos indígenas

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    40%

    Ao menos 40% da Bacia do Rio Napo está dentro de territórios admnistrados por povos indígenas, , incluindo os Cofán, Siona-Secoya, Waorani, Zapara e Kichwas.

Um imperativo da conservação: Protegendo um quinto da água doce do mundo

Embora proteger seus ecossistemas terrestres seja uma necessidade vital, também é preciso fortalecer os esforços para preservar seus ecossistemas aquáticos, que, de acordo com estimativas da FAO, representam entre 17 e 20 por cento da água doce do mundo. Eles banham encostas inundáveis ​​e fornecem água e alimentos para, entre outras populações andinas, os 34 milhões de pessoas que vivem na Amazônia, incluindo os 380 povos Indígenas que se instalam nesta bacia, segundo a mesma entidade.

Na verdade, a contribuição da bacia amazônica é global, pois representa uma parte importante do percentual —37 por cento— dos rios com mais de mil quilômetros que ainda fluem livremente no mundo. Por isso, a Amazônia, especialmente a bacia do rio Napo, no Equador e no Peru, está se tornando um cenário crucial para a conservação da água doce do planeta.

“O Napo desce dos Andes para a planície inundável, formando o leito principal do rio Amazonas. É um importante elo da região montanhosa andina com a planície amazônica”, explica Paulo Petry, cientista sênior de conservação de água doce da TNC.

GALO-DA-SERRA ANDINO Um pássaro da família cotinga nativo das florestas dos Andes.
UM ESFORÇO INTERNACIONAL Conservar a bacia do Rio Napo depende da colaboração de vários países, setores e parceiros para uma abordagem de longo prazo.

No seu conjunto, trata-se de uma complexa rede hídrica de pelo menos 47 mil quilômetros - em que 99 por cento dos afluentes correm livremente - e têm como ponto de partida o vulcão Cotopaxi, entre outras planícies, parques nacionais e reservas ecológicas nos Andes.

Originárias de grandes altitudes, as águas da Amazônia correm por praticamente todas as zonas térmicas até se derramarem no Atlântico, onde abrigam 10% da megafauna aquática mundial, incluindo 22 espécies de golfinhos, peixes-boi, tartarugas, crocodilos, pirarucus e grandes bagres, vitais para as populações ribeirinhas.

A conservação da bacia amazônica exige a união de diferentes países, setores e atores e precisa ser preservada sob uma visão abrangente de longo prazo. “Muito se tem feito para pensar a Amazônia, mas pouco para se pensar nos recursos hídricos específicos que ela contém”, alerta Silvia Benítez, gerente de segurança hídrica da TNC, destacando a importância da execução de ações pontuais e simultaneamente coordenadas que permitam proteger e contribuir para todo o contexto.

Um legado: Preservando um modo de vida

Pelo menos 40% da bacia do Napo está em território Indígena de povos como Cofán, Siona-Secoya, Waorani, Zapara e Kichwas. Populações que precisam proteger seus espaços de convivência e desenvolvimento, bem como seus mananciais, para sobreviver e que têm vivenciado em primeira mão as ameaças que gradativamente atingem o território e colocam em risco a integridade de seus rios e da vida que existe graças a eles.

“Não imaginávamos que os nossos recursos iriam se acabar. Já não é como antes. O rio Chingual localizado mais acima, desagua e polui o nosso rio, o Aguarico, com as  redes de esgotos que despejam os dejetos das grandes cidades na água,” afirma Víctor Quenama, presidente da comunidade Sinangoe da etnia Cofán.

É a sua ligação cotidiana com os rios amazônicos, o sentido que estes têm sobre a sua forma de compreender o mundo e o seu sustento diário que corre risco, pois, diz Quenama, ele conhece casos de comunidades vizinhas que, face à perda de seus rios, dependem da água da chuva

As 48 famílias Sinangoe mantêm o recurso para proteger seu território e costumes ancestrais. “Pescamos como os nossos pais nos ensinaram: com redes, varas, arcos e anzóis feitos por nós e somente em zonas específicas. Tomamos cuidado para que os peixes não acabem. Antes o rio tinha muitos peixes, mas eles estão diminuindo. As crianças não tomam mais banho e nem bebem a água do rio ”, acrescenta Víctor.

AMAZÔNIA PERUANA Um garoto remando em direção a sua escola no Rio Yarapa, afluente do Rio Amazonas no norte do Peru.

As ameaças à saúde dos rios amazônicos são muitas. Segundo Petry, a bacia do Napo enfrenta atualmente o desmatamento, a pecuária extensiva, a expansão da fronteira agrícola, projetos de infraestrutura mal planejados, a entrada de espécies exóticas que colocam em risco a sobrevivência de espécies nativas, e inclusive os resíduos que descem dos assentamentos humanos nos montes andinos.

Na verdade, estudos da Universidade Ikiam, da Pontifícia Universidade Católica e da Universidade San Francisco de Quito mostraram altas concentrações de metais, potencialmente perigosos para o ecossistema e a saúde humana. A proximidade do Napo com o Sistema Trans equatoriano de Oleodutos, cujo duto se rompeu em abril passado, e a presença de pescadores que usam metais pesados também representam um perigo para o afluente.

Para combater essa situação, em 2017, os Sinangoe criaram sua Lei Própria de Controle e Proteção do Território Ancestral que, como povo, os ajuda a repelir a mineração, caça e pesca ilegal dentro de seu território por meio da criação de uma vigilância Indígena que monitora e protege o território.

Nesse sentido, concluiu Víctor, continuam trabalhando e buscando recursos para levar educação sobre o manejo sustentável desses territórios às comunidades e populações que os cercam.

Sinangoe, Ecuador O povo Cofán administra um território essencial para a conservação da bacia do Rio Napo.
Rio Napo As comunidades que vivem ao longo do rio dependem da qualidade das águas para sua subsistência.

A colaboração: Apoiando lideranças indígenas para um futuro sustentável

Neste contexto, a TNC começou a desenvolver a iniciativa de Gestão Comunitária de Recursos Hídricos no território do Napo. A ideia, explica a entidade, é criar e realizar um projeto piloto voltado exclusivamente para a saúde dos rios e sua biodiversidade, com o apoio de comunidades Indígenas que ancestralmente encontraram sustento nessas águas. A meta é dar-lhes instrumentos de gestão legal e educacional para que eles próprios defendam seus rios com autonomia.

Este trabalho teve início em julho de 2019, utilizando bases de dados para identificar as áreas mais relevantes em termos ambientais, de biodiversidade e da presença de comunidades que têm algum tipo de controle sobre o território. Como resultado, as comunidades selecionaram os territórios Sinangoe e a aldeia Ruquyaqta, habitados por Cofán e Kichwa, respectivamente.

“Procuramos focar no trabalho com as comunidades Indígenas porque a bacia do rio Napo está em seus territórios. São eles que estão lá e têm maior interesse ​​em protegê-la porque a bacia é sua fonte de alimentação, transporte e renda ”, afirma Benítez.

Em setembro passado, acrescenta Petry, “fizemos o primeiro contato com os líderes dos territórios. Eles foram cuidadosos, mas nos receberam muito bem e eles próprios levaram a proposta para sua comunidade, algo vital já que sua opinião é muito respeitada. A partir daí, começamos a trabalhar ”, diz o cientista.

Quote: Silvia Benítez

As comunidades indígenas são quem mais querem proteger os rios, porque são as fontes de alimentação, transporte e renda.

Gerente de Segurança Hídrica, TNC

Seguiu-se a coleta de informações sobre a biodiversidade que habita os rios, a começar pelas espécies mais utilizadas pelas comunidades como jacarés, tarpões, boca chicos, tartarugas, caranguejos e camarões, sobre as quais existe mais informação.

Em seguida, observaram o nível de funcionamento do ecossistema, onde existem macro invertebrados aquáticos, fungos e organismos importantes para manter o meio ambiente. Mesmo agora, e apesar do COVID-19, têm sido formuladas possíveis estratégias que, embora dependam de estudos mais aprofundados uma vez que a pandemia passe, têm um bom perfil.

PERU Árvores nativas tem um importante papel na saúde do ecossistema.

Promover o uso sustentável dos recursos naturais, por meio da pesca e aquicultura sustentáveis ​​com espécies nativas; fortalecer o controle e a gestão dos territórios, de acordo com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável; fortalecer as capacidades jurídicas das comunidades desde o direito a consulta prévia para gestão de mineração, petróleo e infraestrutura; e vincular grupos étnicos Indígenas ao turismo, a partir de uma abordagem responsável e sustentável, são algumas dessas estratégias.

O interesse da TNC em proteger a água doce da América do Sul por meio dessas estratégias conjuntas com os povos nativos não é novo. Na verdade, ele surgiu na década de 1990 e se materializou na virada do milênio.

Sua proposta é continuar investigando fórmulas para manter a continuidade dos rios e criar mecanismos de proteção junto às comunidades para que sejam reservas fluviais protegidas e reconhecidas por lei. Um desafio gigantesco, concordam os funcionários da TNC, que é impossível enfrentar sozinho.

“Esse trabalho é baseado no entendimento das comunidades e vai exigir uma ação coletiva pela água, por meio de alianças com universidades, ONGs e os setores público e privado. Queremos que seja um projeto que garanta o bem-estar das comunidades e rios com uma visão de longo prazo ”, finaliza Benítez, que espera que os resultados do piloto possam ser replicados posteriormente nas bacias dos rios Caquetá, Putumayo, Santiago, Marañón e Ucayali.

 

Publicado originalmente no jornal Semana Sostenible (Espanhol)
29 de janeiro de 2021
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