A bioeconomia da sociobiodiversidade: entenda desde as origens do conceito até sua prática pelas comunidades tradicionais da Amazônia
Por Bruna Stein e Francisco de Assis Costa
O termo bioeconomia vem sendo amplamente empregado por governos e estados, nacionais e internacionais, como um novo modelo de desenvolvimento econômico que concilie geração de renda, conservação ambiental e os objetivos de combate às mudanças climáticas. No entanto, vale darmos um passo atrás para entender o que é bioeconomia e como o conceito, na sua origem, de fato dialoga com a conservação da floresta em pé.
Nicholas Georgescu-Roegen (1906-1994), matemático e economista romeno, foi o primeiro pensador a trazer o termo Bio-economia[1] no debate científico. Em contraponto à teoria neoclássica de crescimento econômico ilimitado, o autor revolucionário sugere, de forma inovadora, uma abordagem da economia aplicada às relações econômicas e aos fatores naturais. Processos de transformação decorrentes da inovação tecnológica e adotados pela atividade industrial, seja a partir da transformação da queima de carvão em vapor d’água e energia para locomotiva ou da intensificação do uso da terra para aumento do rendimento e da produtividade agrícola, ocasionam perdas ecológicas irreversíveis (desestruturação da base natural). Nessa ótica, ele sugere a redefinição dos contornos da economia: a economia e todos seus agentes, processos produtivos e institucionais deveriam estar inseridos em um sistema fechado, circular e limitado pela biosfera. O termo “bioeconomia”, portanto, foi sugerido para integrar a teoria biológica ao campo econômico, de modo a estabelecer as relações entre as atividades econômicas, o meio físico-químico e os impactos ambientais daí derivados, que, necessariamente, impõem limites ao modelo de crescimento econômico predominante desde a revolução industrial, orientado à acumulação de capital físico em detrimento do capital natural.
Ainda que as propostas de G.-Roegen não tenham sido aceitas entre os economistas de seu tempo e dos anos seguintes, o termo passou a ser amplamente empregado quando o mundo se viu diante da atual crise humanitária decorrente da pandemia da COVID-19, que assolou vidas e economias. Do Pacote Ecológico Europeu (ou Green New Deal) às propostas do Programa Bioeconomia da Sociobiodiversidade Brasil do Governo Federal, a bioeconomia de hoje se apresenta como uma solução às crises econômica, social e ambiental do século XXI.
Para se pensar esse novo modelo de desenvolvimento, a Amazônia, que é a maior floresta tropical do mundo, com grande presença de povos indígenas e comunidades tradicionais e mais de 40 mil espécies de plantas, se torna uma região crítica para a junção entre bioeconomia e sociobiodiversidade. Esta última, definida como a inter-relação entre a diversidade biológica e a diversidade de sistemas socioculturais, se fundamenta no conhecimento dos povos indígenas, das comunidades tradicionais e agricultores familiares e na valorização de processos ecológicos inerentes à conservação florestal, que otimizam o uso de energias e nutrientes da biodiversidade. Estruturar modelos de desenvolvimento bioecológico para economias baseadas em biomas possibilitaria enfrentar dois dos grandes desafios ambientais do nosso tempo: a crise das mudanças climáticas e a crise da perda da biodiversidade.
O recente estudo Bioeconomia da Sociobiodiversidade no Estado do Pará calculou a importância econômica das cadeias de valor de 30 produtos da sociobiodiversidade, incluindo aqueles mais conhecidos pelo mercado nacional, como açaí, palmito e castanha-do-pará e outros conhecidos apenas regionalmente, como murumuru, bacuri, murici e piquiá. O estudo estimou a geração de renda para além dos setores de coleta e produção, incluindo a agregação de valor que ocorre em cada elo das cadeias, da produção rural local às indústrias de beneficiamento, transformação e comércio. Assim, as análises mostraram que, em 2019, os 30 produtos estudados geraram uma renda total de R$ 5,4 bilhões. Deste valor, cerca de um terço, de R$ 1,9 bilhão, correspondeu à produção rural local, que representa a renda destinada diretamente aos povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultores familiares. As cadeias dos 30 produtos geraram também 224 mil empregos. Alguns produtos lideram a renda total gerada na cadeia, como o açaí com R$ 3,7 bilhões, seguido do cacau amêndoa com R$ 1,3 bilhão, da castanha-do-pará com R$ 140,2 milhões e do palmito com R$89,1 milhões. Estes produtos são amplamente consumidos fora do estado do Pará, apresentando, assim, relevante agregação de valor no mercado nacional (Figura 1).
[1] Georgescu-Roegen, Nicholas. Bio-Economic Aspects of Entropy, Entropy and Information in Science and Philosophy, J. Zeman éd., Amsterdam, 1975
Entretanto, dos 30 produtos analisados, 20 são majoritariamente consumidos no estado do Pará e somam um valor adicionado total de apenas R$ 81,9 milhões (Figura 2). A geração de renda nas cadeias de valor desse grupo de produtos é liderada pelo cupuaçu, seguido do urucum e do bacuri, que geraram R$ 25,9 milhões, R$ 15,2 milhões e R$ 11,5 milhões de valor adicionado, respectivamente, em 2019.
Figura 2: Os 20 produtos majoritariamente consumidos dentro do estado do Pará
Em termos de geração de renda, se comparados com pecuária, um setor que historicamente exerce forte pressão sobre florestas nativas e que exige importantes esforços de controle do desmatamento, os produtos da sociobiodiversidade se colocam no mesmo patamar. Em 2019, no estado do Pará o valor agregado da sociobiodiversidade foi de R$ 4,24 bilhões, enquanto a pecuária gerou R$ 4,25 bilhões. Considerando que os produtos da sociobiodiversidade se fundamentam na floresta em pé e que estas desempenham um papel importante na mitigação e adaptação às mudanças climáticas, entre outros serviços ambientais, o valor dessa cadeia deve ser considerado ainda maior. No estudo, a valoração do carbono foi incorporada à análise de projeção de renda, até o ano de 2040, de dez produtos da sociobiodiversidade, selecionados em função da importância econômica e da variedade de tipologia de uso. A partir de uma série histórica da evolução da renda de cada produto, estima-se que as cadeias dos produtos analisados podem chegar a R$ 170 bilhões em 2040, 40 vezes o valor atual, considerando a tendência do preço e da produção desses produtos.
O fortalecimento das atividades produtivas da sociobiodiversidade e a agregação de valor a essa diversidade sociocultural e biológica a partir de ciência e tecnologia que garantam maior produtividade, sem afetar o equilíbrio ecológico, aliados à mensuração e remuneração dos serviços ambientais embutidos nos produtos, são estratégias fundamentais para um novo modelo econômico para a Amazônia. No entanto, ante a insuficiência de políticas públicas destinadas aos agentes da bioeconomia da sociobiodiversidade − comunidades tradicionais, povos indígenas e agricultores familiares – várias ações estruturantes são necessárias a fim de se garantir a alavancagem desse novo modelo econômico e a valorização da floresta em pé:
· investimento em ciência, tecnologia e inovação;
· acesso a crédito e assistência técnica para agregação de valor e acesso a novos mercados;
· desenvolvimento de sistema de bases de dados das cadeias de valor dos produtos;
· política fundiária, com a regularização dos territórios de uso comum como assentamentos, terras indígenas e territórios quilombolas;
· desenvolvimento de mecanismos financeiros, como pagamento por serviços ambientais, e rastreabilidade dos produtos;
· política fiscal de redistribuição de renda gerada pelos produtos.
Respondendo à questão inicial, é possível dizer que a bioeconomia da floresta em pé, realizada por comunidades tradicionais, povos indígenas e agricultores familiares, aplica na prática as premissas do conceito na sua origem, ao reconhecer os limites ecológicos do bioma e adotar uma fronteira produtiva que garanta a sustentabilidade das atividades sem afetar a conservação da diversidade biológica e sociocultural. Nesse sentido, é preciso desenvolver estratégias de políticas públicas compatíveis com as especificidades dessa economia no bioma amazônico e com a particularidade dos atores sociais envolvidos, de modo a garantir que a organização social e produtiva de geração de emprego e renda ande ao lado do fornecimento de serviços ambientais para o Brasil e para o mundo.
*Bruna Stein é economista na The Nature Conservancy (TNC) Brasil e Francisco de Assis Costa é Professor Titular da Universidade Federal do Pará, no Programa de Pós-Graduação em Economia da Faculdade de Economia e no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA).
Publicado originalmente em Revista Galileu
26 de abril de 2022
Ver Original